11 de abril de 2016

“Quando uma alma abusa da misericórdia divina, a misericórdia divina está bem próxima de a abandonar”

No portal principal da catedral de Notre Dame de Paris, a cena do Juízo Final. À baixo da imagem de Jesus Cristo, à Sua direita, os eleitos que se salvaram; à Sua esquerda, os réprobos que se condenaram

Paulo Roberto Campos 

Nos presentes dias, ouvimos falar por todos os lados, exaustivamente, de misericórdia. Sobretudo neste ano, declarado “Ano Santo da Misericórdia” (ou “Jubileu Extraordinário da Misericórdia”) pelo Papa Francisco através da bula Misericordiae Vultus (O Rosto da Misericórdia).

Mais recentemente, com a divulgação da “Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Lætitia” (A alegria do amor), o tema da misericórdia foi ainda mais bafejado. Em suas 272 páginas, o documento do Pontífice — publicado no dia 8 de abril a propósito do último Sínodo da Família — emprega 46 vezes a palavra misericórdia! 

Mas não sejamos caolhos vendo Deus de modo deformado e incompleto. Ele é infinitamente misericordioso, mas também infinitamente justo.

Evidentemente, em Deus não há contradição. Ele deseja a salvação de todos e, para isso, nos oferece misericordiosamente o Céu por toda a eternidade. Entretanto, condena quem peca mortalmente, recusando toda a bondade divina e desprezando toda a disposição que Ele tem para perdoar o pecador. Este, se não se arrepender, será atingido pela divina justiça. 

Pecou e não deseja ser condenado? — Não se desespere, pois há remédio. Com o coração contrito e humilhado e sinceramente arrependido, faça uma boa confissão com o firme propósito de não mais pecar. Nesse perdão — a absolvição dos pecados concedida pelo sacerdote — vemos o que realmente é misericórdia. Vemos a beleza da clemência de Deus para com seus filhos.

O caso da “mulher adúltera”

Quadro de Nicolas Poussin (1653), Museu do Louvre (Paris)
Conforme a narrativa do Evangelho, no caso da mulher que os escribas e fariseus queriam apedrejar por prática de adultério, Nosso Senhor Jesus Cristo não disse à pecadora: Mulher, pode ir embora. Mas disse-lhe: “Vai e não peques mais” (São João, 8,11). Infelizmente, ouve-se muitos comentarem tal passagem do Evangelho de modo estrábico, dizendo apenas que Jesus não condenou a adúltera, omitindo que Ele a perdoou e a aconselhou que não tornasse a pecar.

Somente alguém psicologicamente vesgo diria que misericórdia é sinônimo de tolerância para com o pecado ou qualquer forma de mal. Deus manifesta suprema misericórdia para com o pecador verdadeiramente arrependido — e para isso, a ninguém falta a graça divina —, mas também manifesta Sua justiça para com o pecador empedernido, aquele que abusa de modo contumaz de Sua misericórdia.

Justo castigo por abusar da misericórdia divina 

Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787) — Doutor da Igreja, Padroeiro dos Confessores e dos Moralistas — define perfeitamente essa questão ao afirmar: “Deus envia mais gente ao inferno por abusar de sua misericórdia, do que por obra de sua justiça.” 

É o que esse santo desenvolve num de seus sermões, cujo trecho transcrevo no final, quando trata do abuso que o pecador faz da misericórdia. Ele prega que o próprio demônio nos engana inspirando o falso conceito de misericórdia, para que levemos assim uma vida cometendo pecados, sem nos arrepender deles, nem confessá-los a um bom sacerdote. 


Sandro Magister, célebre jornalista italiano, especializado em temas religiosos, publicou um interessante artigo, intitulado Giubileo della misericordia, ma con i confessionali vuoti (Jubileu da misericórdia, mas com os confessionários vazios), no qual reproduz carta de um sacerdote que lhe escreveu testemunhando que neste “Ano Santo da Misericórdia” os confessionários estão vazios — como se a misericórdia dispensasse o pecador do sacramento da penitência (ou confissão). Entretanto, no “Ano Santo da Misericórdia” deveria ocorrer justamente o contrário: aproveitar para pedir especial misericórdia, acorrendo multidões aos confessionários. É o que não acontece... Os confessionários estão às moscas...

Evitemos qualquer unilateralismo 

Em seu livro “Em Defesa da Ação Católica, Plinio Corrêa de Oliveira, desenvolve o tema da justiça e da misericórdia, do perdão e do castigo divinos, recomendando não sermos unilaterais vendo apenas um aspecto de Deus. O autor cita D. Antonio Joaquim de Melo, “um dos maiores Bispos que teve o Brasil” [quadro ao lado]. que — corroborando a afirmação acima citada de Santo Afonso de Ligório —, dizia: “a Misericórdia de Deus tem mandado mais almas para o inferno do que sua Justiça.”. E o Prof. Plinio comenta: “Em outros termos, afirmava o grande Prelado que a esperança temerária de salvação perderá maior número de almas, do que o temor excessivo da Justiça de Deus. Do mesmo modo, é indiscutível que a excessiva benignidade na aplicação das penas, que ora se observa em muitas associações religiosas, e a inteira carência delas em certos setores, têm depauperado mais as fileiras dos filhos da luz, do que os atos de energia inconsiderados e talvez excessivos, eventualmente levados a cabo” (Plinio Corrêa de Oliveira, Em Defesa da Ação Católica, Artpress, 2ª edição, 1983, pág. 153). 




Passo à transcrição do referido trecho do sermão de Santo Afonso Maria de Ligório [quadro acima], considerado um dos maiores moralistas de todos os tempos. 

“Misericórdia! Sim, mas para aquele que teme a Deus, e não para aquele que abusa da paciência divina!” 


“Pode ser que haja, no meio de vós, meus irmãos, alguém que se encontre com a alma carregada de pecados e que — longe de pensar em se livrar deles pela confissão e penitência — não cessa de cometer novos pecados, se sobrecarregando ainda mais. Este, certamente, abusa da misericórdia divina; pois, a que fim nosso Deus tão bom deixa que este pecador viva senão para que ele se converta e, por consequência, escape da desgraça de perder sua alma?

Ele merece as severas censuras que o Apóstolo dirigiu ao povo judeu impenitente: Porventura desprezas as riquezas da bondade, da paciência e da longanimidade de Deus? Ignoras que Sua bondade te convida à penitência? Mas que na tua dureza e coração impenitente, acumulas para ti um tesouro de ira no dia da ira e da manifestação do justo juízo de Deus (Rom. II. 4,5).

Eu quero vos afastar, meus irmãos, desse funesto abuso, e vos preservar da desgraça de cair na morte eterna do inferno. A esse propósito, chamo vossa atenção para a seguinte verdade: Quando uma alma abusa da misericórdia divina, a misericórdia divina está bem próxima de a abandonar […]. 

Santo Agostinho observa que, para enganar os homens, o demônio emprega ora o desespero, ora a confiança. 

Após o pecado, o demônio nos mostra o rigor da justiça de Deus para que desconfiemos de Sua misericórdia. Entretanto, antes do pecado, o demônio nos coloca diante dos olhos a grande misericórdia de Deus, a fim de que o receio dos castigos, devidos ao pecado, não nos impeça de satisfazer nossas paixões […]. 

Essa misericórdia sobre a qual vós contais para poder pecar, dizei-me, quem vo-la prometeu? — Não Deus, certamente, mas o demônio, obstinado em vos perder. Cuidado!, diz São João Crisóstomo, de dar ouvidos a este monstro infernal que vos promete a misericórdia celeste […]. 

’Deus é cheio de misericórdia, eu pecarei e em seguida confessar-me-ei’. Eis aí a ilusão, ou antes, a armadilha que o demônio usa para arrastar tantas almas ao inferno![…]. 

Nosso Senhor, aparecendo um dia a Santa Brígida, queixou-Se: ‘Eu sou justo e misericordioso, mas os pecadores não querem ver senão minha misericórdia’ (Ego sum justos et misericors; peccatores tantum misericordem me existimant - Rev. 1. I. c. 5). Não duvideis, diz São Basílio, que Deus é misericordioso, mas saibamos que Ele é também justo, e estejamos bem atentos para não considerar apenas uma metade de Deus. Uma vez que Deus é justo, é impossível que os ingratos escapem do castigo […]. Misericórdia! Misericórdia! Sim, mas para aquele que teme a Deus, e não para aquele que abusa da paciência divina!”.
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(Sermons de S. Alphonse de Liguori, Analyses, commentaires, exposé du système de sa prédication, par le R.P. Basile Braeckman, de la Congrégation du T. S. Rédempteur, Tome Second. Jules de Meester-Imprimeur-Éditeur, Roulers, pp. 55-60).

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